Agremiações de Carnaval: o Canto das Três Raças em Pernambuco

cultura pernambucana

A Diversidade das Agremiações de Carnaval

As Agremiações de Carnaval são reflexos da convergência da diversidade étnica na formação cultural do País.

Entretanto, não podemos esquecer que algum dia tal processo eventualmente possa ter sido doloroso, por exemplo, quando práticas como a escravidão faziam parte da vida dos cidadãos.

Esse fato tenebroso da nossa história é inegável e deixou sequelas profundas.

Porém, quero focar as atenções no lado positivo, isto é, nas heranças culturais que tais etnias deixaram para as gerações futuras.

Cuidar bem das boas memórias e sementes culturais e então fazer brotar os bons frutos que cada raça transportou durante os séculos é atuar na rica fertilização da sociedade.

É uma missão de amor. No caso do Brasil, assim espero que sempre o seja. Nosso país deve se orgulhar da beleza e confluência das suas origens.

Afinal, das figuras do indígena, do africano e do europeu saltaram e saltam particularidades diversas que enriquecem os nossos dias, muitas vezes e infelizmente sem a atenção merecida.

O Carnaval e o Leão do Norte

Antes de tudo, vou me concentrar no Nordeste brasileiro.

Considero, então, o Estado que já foi um dia conhecido como o Leão do Norte.

Em Pernambuco frequentemente as três raças encontraram prolongamentos peculiares na coletividade de diversos grêmios carnavalescos como forma de expressão cultural.

Hoje porém, apesar de um tipo de agremiação fazer referência cultural a uma determinada “linhagem”, as suas alas são compostas por desfilantes de múltiplas origens étnicas, dando assim o colorido humano característico do carnaval, como sempre deve ser.

Apesar de o catálogo de agremiações carnavalescas ser muito mais vasto, limitarei-me aqui a destacar apenas três exemplos delas, fazendo assim uma ligação com cada um dos grupos étnicos acima citados.

A Influência Indígena nas Agremiações de Carnaval: fantasia e música

Agremiações de Carnaval: caboclinho de pernambuco

O meu ponto de partida é, portanto, o caso da cultura indígena.

As agremiações relacionadas a esta cultura são assim chamadas: Caboclinhos ou, Cabocolinhos.

A princípio, homens e mulheres trajam fantasias compostas por saias, cocares, tornozeleiras, colares, pulseiras, braceletes, cintos com chocalhos presos, todos manufaturados com ricas e coloridas penas.

O repertório musical que se toca em tais grupos se inspira nas sonoridades florestais primitivas.

A base rítmica utilizada portanto é composta por toques de tambores e preacas, estes últimos sendo instrumentos de percussão em forma de arco e flecha emitindo estalos secos de madeira.

Além disso, se utilizam flautins de taquara, que tecem melodias agudas e alegres em cadências distintas, das quais se destacam o canto guerreiro e o perré.

No carnaval, muitos desses grupos desfilam pelas ruas do Recife presenteando os foliões com espetáculos de exuberância e lépida alegria.

Assim, a cultura indígena encontrou uma forma alternativa para expressar os seus costumes, crenças e lendas que, aliás, não são poucas.

Caboclinhos: lendas e costumes

Entre os vários mitos indígenas destacam-se, por exemplo: a lenda do Boto cor-de-rosa (o galanteador), do Curupira e da Caipora (dois dos guardiões das florestas), do Boitatá (a serpente de fogo), a lenda da Mandioca e a lenda da Iara (a mãe d’água). 

Em geral, uma lenda vai sendo passada de boca em boca através das gerações como uma espécie de bastão da tradição e, por isso, sofre alterações e variações ao longo dos anos.

No caso da lenda da Iara, por exemplo, diz-se que numa de suas primeiras versões, referia-se a um homem-peixe que atacava pescadores e os levava para o fundo dos rios.

A partir do século XVIII, entretanto, uma nova versão vigorou no imaginário popular.

Trata-se da versão feminina da mulher encantada e sedutora que, a princípio, também já encontra influências trazidas do universo mitológico das sereias. 

Mas deixarei essas controvérsias à parte.

Afinal o que quero destacar aqui é a manifestação agremiativa e o estilo musical de base indígena presente no ambiente carnavalesco.

Os Caboclinhos se fizeram impor portanto, carregando em si a expressão maior da cultura desta etnia em seus desfiles pelas ruas das cidades. 

Letra do Caboclinho “Senhora das Águas”

Carijós, Canindés, Taperaguases,
Caboclo Tupy, Tapirapés,
Caboclinhos Tabajaras,
É ela a mulher, Senhora das Águas,
É ela a mulher, Ôô ô Iara…

Vem lá do Norte
O negro dos olhos
Cabelos e lábios de mulher
Deusa tão forte
Nas águas escuras
Caboclo se entrega aos seus pés

É guardiã
Dos rios, da mata,
Se enfeita com a flor do mururé
Ela é irmã
Do fogo que arde
No sangue da presa que lhe quer

Sirena chamou
Marujo sumiu
Sereia cantou
Iara levou
O tapuio pro rio

O canto que essa mulher detém
Toda floresta não será capaz
De suportar, de tanta magia,
Aracuã vadia, já não canta mais

Quando ela sai, leva mil reféns
No igarapé, sobressalta a paz,
Céu escurece e o vento esfria
Jassanã se avia, capiuara atrás

Iara é lenda que do povo vem
Mora na fé de todo rapaz
De se perder nessa febre estranha
Da pele castanha que a morena traz

Link para a Música Aqui

A Influência do Africano no Carnaval de Pernambuco

Em seguida, considero o caso dos prolongamentos carnavalescos da cultura africana.

Em Pernambuco há um gênero agremiativo que traduz, pois, essa cultura através do poder estrondoso e arrepiante dos tambores: o Maracatu Nação, também conhecido como Maracatu de Baque Virado.

Cultura secular, em seus cortejos pelas ruas, o Maracatu representa assim o universo da nobreza africana de tempos remotos, como os reinados do Congo.

O grupo é diferenciado de acordo com alas que refletem as cortes imperiais da África do passado.

Exemplos desses integrantes legítimos são o rei, a rainha, os ministros e embaixadores, as damas da corte e o porta-estandarte.

Além disso, há também as damas do paço, que carregam nos braços e exibem ao público as calungas, bonecas negras enfeitadas, simbolizando os orixás como Xangô ou Oxum.

Maracatus: Imponência Secular

Alguns Maracatus em atividade a citar são, por exemplo, Nação Leão Coroado, Nação Porto Rico, Nação Estrela Brilhante de Igarassú, Nação Estrela Brilhante de Recife e Nação de Maracatu Cambinda Estrela.

Um dos mais antigos foi o Maracatu Elefante, fundado em 1800, e que teve a famosa Dona Santa como a sua rainha.

A força rítmica da ala dos batuqueiros dos Maracatus é impressionante e por isso eles são um espetáculo tão impactante.

Suas viradas e levadas são proporcionadas principalmente pelas alfaias, grandes tambores adornados e coloridos, confeccionados artesanalmente.

Além disso, se juntam outros instrumentos percussivos como os xequerês, os gonguês, as maracás e as caixas.

A poliritmia inicia-se muitas vezes após o Mestre puxar uma loa, que é a parte de um verso musical cantado sem acompanhamento instrumental.

Por volta de 1960, em Recife, criou-se a chamada Noite dos Tambores Silenciosos, que desde então decorre durante a segunda-feira de carnaval no Pátio do Terço, no Bairro de São José.

Nesta cerimônia de sincretismo religioso, os Maracatus se reúnem e realizam apresentações coletivas.

Mas o ápice deste espetáculo acontece justamente quando os tambores silenciam, as luzes do pátio são apagadas e todos juntos realizam uma oração em iorubá.

Letra do Maracatu “Xequerê de Calunga”

Segunda-feira vai arder lá no Pátio do Terço
Oração de tambor

Segunda-feira vai surgir do metal no gonguê
Som estalado de amor

Segunda-feira vai tremer na virada da caixa
A loa que o Mestre puxou

Segunda-feira vai bulir cabaceiro amargoso
Na mão que Calunga jogou

Calunga, saculeja esse xequerê
Que a pele da morena, assim, suará
Não esqueça: Calunga bom tem que remexer
Sem perder a toada que libertará

Link para a música Aqui

A Influência do Europeu no Carnaval de Pernambuco

Agremiações de Carnaval: Um Bloco em Poesia

Para finalizar esse breve passeio pelos prolongamentos étnico-culturais no carnaval pernambucano, retornarei ao fim do século XIX para então considerar alguns desdobramentos da influência europeia lusófona no nordeste brasileiro.

Sendo assim, considere primeiro os diversos grupos de músicos seresteiros que se reuniam constantemente para realizar os seus saraus, serenatas e recitais em família nos bairros do Recife.

Por outro lado, adicione a isso também as práticas das procissões e do pastoril, um folguedo europeu relacionado ao Presépio e que se compõe através de danças e músicas, sejam elas religiosas ou profanas.

Da confluência desses movimentos, por volta de 1920, nasceram assim os Blocos Carnavalescos.

Mas atenção, entenda-se aqui que tais agremiações não têm nenhuma semelhança com a estridência musical dos trio-elétricos ou coisa parecida.

Pelo contrário, a música dessas agremiações era proporcionada por uma orquestra de pau-e-corda formada por violões, bandolins, violinos, flautas, clarinetes de ébano, surdos e pandeiros, entre outros.

A Presença Feminina no Carnaval de Rua

A Princípio, os Blocos Carnavalescos possuíam um coral feminino, responsável por entoar os textos dos frevos-de-bloco, embebidos de romantismo saudosista.

Tais agremiações também viriam ser responsáveis por um marco social significativo, pois permitiram a inclusão feminina e a sua participação mais segura no carnaval de rua.

Naquela época, o carnaval fora dos clubes era um tanto violento pois o jogo hostil dos mela-melas, contendas e desavenças eram constantes, herança essa ainda do truculento entrudo português.

Portanto, as ruas não eram nada convidativas para as esposas, irmãs, primas e filhas dos seresteiros.

Sendo assim, a solução trazida pelos Blocos Carnavalescos foi o uso do famoso cordão protetor, que era carregado pelos homens, salvaguardando as suas queridas companheiras da agressividade exterior.

Os Blocos Carnavalescos Líricos

Ao longo dos anos, o movimento dos Blocos Carnavalescos Líricos, como são denominados hoje, teve muitos altos e baixos.

Entretanto, o estado atual após a virada do milênio é o de grande esplendor.

Hoje, há mais de cinquenta agremiações desse tipo fundadas em diversos bairros não só da capital pernambucana mas também das cidades adjacentes.

Cada qual é formada por uma quantidade média de setenta ou oitenta componentes que assim, com muito glamour, desfilam pelas ruas, promovendo um espetáculo visual e sonoro de lirismo sem igual.

A grande apoteose desses desfiles é um evento então chamado de Encontro dos Blocos Líricos e ocorre no Marco Zero do Recife, na segunda-feira de carnaval.

Vale aqui citar os nomes de algumas dessas agremiações.

Por exemplo: Um Bloco em Poesia, Eu Quero Mais, Flor Camará, Amantes das Flores de Camaragibe, Flor do Eucalipto de Moreno, Cordas e Retalhos, O Bonde, Artesãos de Pernambuco, Flor da Lira de Olinda, Banhistas do Pina, Bloco das Ilusões, entre tantos outros.

Letra do Frevo-de-Bloco “A Luz dos Blocos”

Neons, banhando o espelho desse rio marrom
De saia longa em vibrações crepom

Trocai a vossa fria luz neon
Pelo calor dos nossos corações

Soltai a branca voz das procissões
Tocai a rubra corda dos violões

Vesti a manta azul das tradições
E a verde-glória luz da multidão

A gloriosa luz da multidão

Link para a música Aqui

A Mistura das Agremiações de Carnaval

Enfim, essa é uma pequena parcela das nuances do carnaval de Pernambuco.

Nesse Estado, muito da festa é feito pela sua própria gente, que é não só guerreira mas também bastante criativa e de humor aguçado.

Os milhares de turistas espectadores que lá vão têm portanto a possibilidade de assistir a uma autêntica expressão popular.

Pernambuco transforma-se numa espécie de teatro ao ar livre, desde que a sua gente faz das ruas e avenidas o seu palco para encenar e expressar a riqueza das suas heranças étnico-culturais.

Em cada um dos movimentos populares pernambucanos aqui citados, isto é, o Caboclinho, o Maracatu e o Bloco Carnavalesco Lírico, a mistura prevaleceu.

A Tradição navega pelas Agremiações de Carnaval

Com esta breve exposição, não pretendi dar o monopólio ou o domínio do indígena, do africano ou do europeu sobre cada um dos seus respectivos movimentos agremiativos, muito menos desconsiderar o influxo de uma cultura sobre a outra.

Pretendi, entretanto, destacar que em cada uma dessas manifestações coletivas carnavalescas houve, em sua origem, uma predominância e influência étnica clara que vive a brilhar hoje durante, por exemplo, os festejos de Momo.

As agremiações são assim expressões legítimas e prolongamentos culturais dos seus indivíduos, que se realimentam dinamicamente com o passar do tempo e pulsam o colorido múltiplo do imenso mosaico social.

Tudo isso é transmitido, em seguida, de geração para geração.

A tradição é afinal uma gostosa e divertida lição de história e de amor pelas raízes da nossa gente.

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