O Império e a Arte da Cantoria de Viola
No império encantado da Cantoria de Viola há reis raros e destemidos que assim construíram o seu reinado enfrentando batalhas acirradas contra adversários ilustres e sob a presença inexorável das correntezas do tempo.
Sim: o Juízo do Tempo, pois que tais reis se honraram ao tocar o trigo da poesia e elaborar o seu pão quase que de forma instantânea.
O desafio é perigoso. Além disso, não há muito tempo para pensar. Tem-se menos de um segundo para improvisar.
A qualquer descuido, portanto, o adversário pode inferir um golpe derradeiro.
O arrebatamento pelas lutas vencidas por tais reis está justamente aí: na forma repentina como eles acedem ao Belo, sob a pressão do momento que flui.
Alguns dos reis da Cantoria de Viola carregam um cetro encordoado, a viola, como apoio às suas pelejas. Outros empunham, atipicamente, uma rabeca ou um pandeiro.
Mas a sua arma mais eficaz é a lâmina afiada do seu pensamento ligeiro e certeiro.
E quando o golpe é bem inferido, paralisa o oponente de forma precisa.
Tais reis guerreiros são os repentistas nordestinos, cujos castelos imponentes foram construídos, tijolo a tijolo, no palmilhar das estradas, brenhas, enfim, nos desafios organizados pelos interiores brasileiros.
As Regras dos Duelos da Cantoria de Viola
Primeiramente, as regras e campos de batalha variam e são acordados num pacto de cavaleiros que decidem como irão duelar.
Uma das minutas mais comuns adotadas é a sextilha.
Trata-se de uma estrofe constituída por seis versos, cada um tendo sete sílabas poéticas (versos heptassílabos também conhecidos como redondilhas maiores).
O esquema das rimas são normalmente nos versos pares.
Vale trazer aqui uma ilustração desta forma dos versos, numa peleja entre Lourival Batista Patriota (o Louro do Pajeú) e Severino Lourenço da Silva Pinto (o Pinto do Monteiro).
As sextilhas haviam sido acordadas preliminarmente. Em determinado momento do embate, Louro concluiu:
Louro do Pajeú:
É isso que me distrai
Vou terminar com mais fé
Que ali já deram um sinal
Pra o filho de São José
Vou tomar outra bicada
E Pinto tomar o café
Vale lembrar aqui que os versos acima foram criados na hora da cantoria como rege a arte do repente.
Quase não houve tempo para pensar e elaborar a estrofe conforme as regras pré-estabelecidas.
No quarto verso acima, Louro referiu-se à São José do Egito, cidade onde nasceu a 6 de janeiro de 1915. Destaque ainda na sextilha com este exemplo para as rimas nos versos pares: fé, José e café.
Modalidades mais Complexas da Cantoria de Viola
Entretanto, tais combates podem ser ainda mais duros e complexos. Na forma dez pés a quadrão os guerreiros arremetem golpes de forma alternada, verso a verso.
A estrofe completa é construída a duas mãos até perfazerem dez versos cumprindo um esquema de rimas: ABBAACCDDC.
Quando um pelejador inicia e lança o primeiro verso, o adversário responde na hora com o verso seguinte e ambos assim prosseguem construindo sucessivamente a estrofe completa com sentido e coerência temática.
Há, portanto, uma dura corrida contra o relógio.
Ao fim, ambos finalizam em coro com um verso fixo, como por exemplo: “E lá vão dez pés a quadrão”. A seguir, numa contenda ainda entre Louro do Pajeú e Pinto do Monteiro, vê-se um registro de um desses embates que, no caso, foi iniciado por Pinto:
Exemplo de Estrofe: “Dez Pés a Quadrão“
Pinto: O vexame é contra a calma
Louro: E a calma é contra o vexame
Pinto: Ignorância é o exame
Louro: Matéria foi contra a alma
Pinto: Esse não merece palma
Louro: Mas Deus lhe dá o perdão
Pinto: Chegando a ocasião
Louro: Nos salva em qualquer hora
Pinto: Bota longe da caipora
Pinto e Louro: E lá vão dez pés a quadrão
Fazendo a Cantoria de Viola Ainda mais Difícil
A complexidade e variedade das formas da cantoria ou repente é bastante ampla. Outros exemplos de estruturas no versejar são as décimas, o mourão, os galopes, os martelos, etc.
Espantoso é perceber que os cantadores criam os seus versos instantaneamente, dentro da temática e contexto exigidos e ainda respeitando as leis silábicas e de rimas que lhe foram impostos.
É assim que esses guerreiros atravessam as veredas do Império da Poesia.
Foi assim que muitos desses cavaleiros repentistas viraram reis, lutando contra o tempo e forjando na sua correnteza imparável centenas de versos de improviso.
Muitos mereceram reconhecimento das paragens e das povoações por onde passaram e fizeram brilhar as suas lâminas afiadas. Além disso, muitos deles foram homenageados e louvados por autoridades e colegas de batalha.
Para finalizar, lembra-se o registro feito pelos repentistas João Paraibano e Sebastião Dias ao homenagearem, por exemplo, a saga poética e destreza de Pinto do Monteiro aquando da sua morte.
Dias e Paraibano utilizaram versos decassílabos e o seguinte mote para a cantoria (Nota: aqui o mote é constituído por dois versos que influenciam a feitura de todo o repente).
Mote:
“O Nordeste chorou porque perdeu
Seu maior patrimônio de poesia”.
Então, uma das estrofes do repente foi dita assim:
João Paraibano e Sebastião Dias:
Calem todas as musas do Parnaso,
Chorem todos poetas, ouçam gênios
A leitura da ata dos milênios
Que em pauta registra um triste caso:
É que o tempo pediu o fim do prazo
Do oráculo do reino da magia
Cuja sua imortal sabedoria
Teve em nosso planeta o apogeu,
O Nordeste chorou porque perdeu
Seu maior patrimônio de poesia.
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